Angra do Heroísmo: Órgão da Igreja de Nossa Senhora da Guia
Órgão da Igreja de Nossa Senhora da Guia
O órgão da Igreja Nossa Senhora da Guia foi construído no ano de 1788, por António Xavier Machado e Cerveira, o mais conceituado organeiro português de todos os tempos, que construiu mais de cem instrumentos deste género. Este órgão, que ostenta o n.º 22, é um dos instrumentos mais antigos saídos de suas mãos e, destes, o mais antigo nos Açores, obedecendo a regras de construção muito próprias da escola de organaria portuguesa do Século XVIII, que caracterizam o órgão português e que permitem distingui-lo dos construídos por outras escolas.
A investigação efetuada por Dinarte Machado permite concluir que um número deveras elevado de órgãos foi criado por António Xavier Machado e Cerveira para os conventos franciscanos, destacando-se de entre eles o do convento de São Francisco de Angra do Heroísmo, propositadamente encomendado para este espaço, como testemunham as insígnias do florão sobre o castelo de tubos central.
Trata-se de um instrumento dos mais curiosos do ponto de vista da organização do seu plano tonal, pois a sua composição revela o que era solicitado a um instrumento do género naquela época. A registação proporciona acentuados registos de mutação e a existência de um pisante permite criar planos sonoros diferentes, o que era uma prática exigida pelo modelo da polifonia daquele tempo.
A colocação deste órgão junto ao coro, numa tribuna do lado do Evangelho (lado esquerdo dos fiéis), virado para a nave central, é também de realçar, dado que se trata atualmente do único órgão a permanecer no seu local original. Esta localização, além de permitir que os frades exercessem o seu dever de louvar a Deus pelo canto, sem se misturarem com os leigos ou frades menores, criava igualmente a aparência de um certo “mistério”, escondendo os intervenientes que não deviam aparecer, como é o caso dos foleiros.
A alimentação do vento era feita recorrendo à força humana. Um foleiro acionava três foles cuneiformes de ação suspensa, colocados no exterior do instrumento, num sótão construído para o efeito e localizado mais atrás, escondido da assistência e com acesso a partir de uma antecâmara do coro. Durante o Século XIX, essa plataforma foi desmantelada, colocando-se dois desses três foles, sobrepostos, no interior da caixa, o que implicou sacrificar alguns dos registos existentes, de forma a ganhar espaço para aqueles dispositivos.
FICHA TÉCNICA
Produção
Museu de Angra do Heroísmo
Coordenação
Helena Ormonde
Textos
Ana Lúcia Almeida
Dinarte Machado
Francisco Maduro-Dias
CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS
um só teclado manual cujo âmbito é: C ——— c3 c#3 ———– e5;
¬ um pisante para anular os registos de cheios e mutação;
¬ dois pisantes para fazer soar os tambores acústicos;
¬ diapasão encontrado e aplicado: 430 Hz;
¬ pressão do vento atual: 68 mm ca;
¬ temperamento desigual, próximo do utilizado na época da construção
do instrumento.
REGISTAÇÃO
MÃO ESQUERDA
¬ Trompa Real
¬ Resímbala de 3 vozes
¬ Símbala de 4 vozes
¬ Compostas de vinte dozena 5 v
¬ Compostas de 19ª de 3 vozes
¬ Dozena
¬ Quinzena
¬ Flautado de 6 tapado
¬ Flautado de 6 aberto
¬ Flautado de 12 tapado
¬ Flautado de 12 aberto
MÃO DIREITA
¬ Clarim
¬ Corneta de 5 vozes
¬ Resímbala de 3 vozes
¬ Símbala de 4 vozes
¬ Compostas de 19ª de 4 vozes
¬ Voz Humana
¬ Flauta em 12
¬ Flautim
¬ Oitava Real e 15ª de 3 vozes
¬ Flautado de 12 tapado
¬ Flautado de 12 aberto
Convento de São Francisco, Angra do Heroísmo, Açores
RUÍNA E RESTAURO
Este instrumento, que já se encontrava em muito mau estado desde os anos sessenta do Século XX, foi atingido, aquando do sismo de 80, pela derrocada parcial de um dos arcos da igreja de N.ª Sr.ª da Guia, sendo desmontado em 1981/2, por Luís Esteves Pereira, não tendo sido encontradas referências de desmontagem, o que levou a que a sua recuperação dentro dos traços originais se convertesse num processo moroso de investigação.
O que mais notabiliza o trabalho executado pelo mestre organeiro Dinarte Machado é a recuperação de 85% dos tubos sonoros originais, que, integrados no instrumento atualmente conservado e restaurado, garantem uma sonoridade muito próxima daquela para que foi construído.
Num universo de 1.174 tubos sonoros, labiais e palhetados, criaram-se apenas todos os tubos para os registos de Corneta de m.d., Símbala de m.e., Trompa Real de m.e. e alguns tubos intercalados, num total de 263 tubos novos.A decoração, a folha de oiro, dos tubos de fachada é a do Século XVIII.
Os dois foles originais existentes foram, também, reutilizados e procurou-se um compromisso para aproximar o mais possível este instrumento histórico das suas características iniciais, dado ter sido decidido que o sistema de sótão com três foles não seria reposto, aquando do restauro. Foram mantidos dentro da caixa, mas lado a lado e mais atrás, de modo a permitir a reposição dos tabuões e conjuntos de tubos dos registos que haviam sido suprimidos no Século XIX, a saber: Trompa Real m.e., parte dos tubos de flautado de 12 aberto m.e. e os tambores acústicos.
A nova disposição destes elementos e a nova colocação dos foles permite dizer que falta apenas o sótão para que todo o conjunto apresente a configuração arquitetónica e sonora originais.
A caixa foi igualmente alvo de intervenção paralela por parte dos técnicos da Direção Regional da Cultura, de modo a consolidá-la e a restitui-la à sua configuração original, retirando-lhe aberturas e funcionalidades introduzidas no Século XIX.
Em termos gerais, o restauro efetuado por Dinarte Machado e a sua equipa logrou recuperar mais de 80% do conteúdo histórico sonoro do instrumento, numa totalidade de mais de 1000 peças.
RELEVÂNCIA DOS AÇORES NA CERTIFICAÇÃO DA ESCOLA PORTUGUESA DE ORGANARIA
É através da ação das ordens monásticas que a música e nomeadamente os órgãos aportam aos Açores. Desde o povoamento que aqueles foram chegando, em forma de positivos ou portativos, pequenos instrumentos que integravam a bagagem dos missionários quer, fossem eles Franciscanos, Jesuítas, ou pertencentes a outras congregações, como é o caso das Clarissas.
A abordagem musical levada a cabo nas diferentes regiões ainda não se tinha particularizado. As solicitações feitas aos instrumentos eram basicamente as mesmas, pelo que estes não apresentavam características que os distinguissem e os constituíssem em escola.
Mais tarde, porém, a particularização das práticas musicais nos vários países vai determinar a construção de instrumentos com aspetos diferenciados, originando um formato cultural identificativo dos mesmos. À criação destas escolas, Dinarte Machado chama regionalização, uma vez que estes instrumentos não só se definem como sendo do país A ou B, mas também se diferenciam por cada região.
Em Portugal, até ao terramoto de 1755, não se faziam ainda sentir estas nuances, nem a nível dos instrumentos nem no modo de musicar, e assim coexistiam instrumentos de escola nórdica, incluindo a flamenga, com outros de origem ibérica. Todavia, por razões de natureza política e de transporte, no Século XVIII, a relação com o Sul de Itália, e
especialmente com Nápoles, estreita-se. Depois do terramoto, são muitos os artistas italianos em Portugal, entre os quais organeiros. Logo em 1756, são encomendados vários órgãos de armário, para colmatarem as faltas existentes. Desta maneira, as liturgias podiam ser musicadas, mesmo sem decorrerem em locais construídos para esse fim, já que, apesar das igrejas estarem na sua grande maioria destruídas, as cerimónias religiosas continuavam a realizar-se.
Com estes instrumentos criam-se modos de musicar, coincidentes com a escola de Roma e com a antiga Patriarcal (seminário) em Lisboa, adaptados aos mesmos, e levando a que os organistas se habituem a eles.
No último quartel do Século XVIII, começa a destacar-se a obra de uma família de organeiros portugueses, nomeadamente Bento Fontanes e Joaquim António Peres Fontanes, ambos filhos de Fontanes de Maquera, natural de Ponte Vedra, autores do antigo órgão grande da Sé de Angra, dos de São Gonçalo e St.ª Bárbara, na ilha Terceira, e dos de S. José e do Carmo, em S. Miguel. Por esta altura, surge também uma outra figura grande da organaria portuguesa, originária do norte de Portugal: Manuel Teixeira de Miranda, escultor e construtor de órgãos como os de Lorvão e Santa Maria de Belém, em Lisboa. O seu filho, António Xavier Machado e Cerveira, e Joaquim António Peres Fontanes são considerados os criadores da escola de organaria portuguesa.
Os dois inventaram um tipo de instrumento muito próprio, cujos aspetos técnicos e artísticos o diferenciam dos que particularizam outras escolas. Muito embora possam ter algumas semelhanças com os órgãos do país vizinho, hoje, perante o conhecimento que se tem destes instrumentos, torna-se errado continuar a generalizar, deixando de especificar as caraterísticas próprias da escola de organaria portuguesa do Século XVIII, que dão resposta e expressão ao gosto e forma de musicar nacionais. São, tal como acontece com este de N.ª Sr.ª da Guia do antigo convento de São Francisco de Angra, órgãos de organaria portuguesa.
A existência desta escola foi apresentada e justificada, internacionalmente, pela primeira vez, em intervenção feita por Dinarte Machado, no Congresso Internacional de Organaria, realizado em Mafra, em 1984. Para a sua certificação, contribuiu de forma decisiva o inusitado número de instrumentos provenientes dessa escola, existente nos Açores, cujas qualidades únicas, sobretudo graças ao restauro de que têm vindo a ser alvo, podem ser, hoje, devidamente apreciadas.
CONCERTO INAUGURAL APÓS O RESTAURO, 24 DE MARÇO DE 2012
Após o acurado trabalho de restauro efetuado por Dinarte Machado, o órgão histórico da igreja de N.ª Sr.ª da Guia voltou a fazer-se ouvir, a 24 de Março de 2012, pelas mãos do exímio organista João Vaz. A programação do recital foi por ele especialmente construída para evidenciar a capacidade, a riqueza e a variedade tímbricas deste instrumento e facultar uma breve panorâmica da produção organística na Europa, nos Séculos XVII e XVIII.
Quanto às particularidades do instrumento, há a assinalar a escolha de peças como Cuatro piezas de clarines (Anónimo, Espanha, Séc. XVII), que, no dizer de João Vaz, “exploram a sonoridade penetrante dos tubos de palheta dispostos horizontalmente na fachada do órgão, uma das características mais marcantes dos órgãos peninsulares seiscentistas e setecentistas”. Por seu turno, a Aria XXII (Giuseppe Paganelli, Nápoles, 1710/ca.1763) foi incluída por fazer “ouvir a sonoridade ondulante do registo de Voz humana, particularidade só encontrada nos órgãos italianos e portugueses do Século XVIII”. O Meio registo de 2.º tom (Diogo da Conceição, Portugal, Séc. XVII) foi igualmente selecionado por explorar “uma outra característica dos órgãos ibéricos: o teclado partido, (…) sistema que permite a coexistência de dois timbres diferentes num só manual.” Outras obras, como as variações sobre a ária Jesu du bist allzu schöne (Georg Böhm, Alemanha,1661/1733), apresentaram sucessivamente várias sonoridades contrastantes.
“A viagem pela história da produção organística”, ainda segundo João Vaz, incluiu a “audição de um repertório escrito ao longo de dois séculos”. Obras de Francisco Correa de Arauxo (Espanha, 1584/1654), Dietrich Buxtehude (Alemanha, 1637/1707), Joan Cabanilles (Espanha, 1644/1712) e Johann Sebastian Bach (Alemanha, 1685/1750) “testemunharam a diversidade da cultura organística europeia”. À severa estrutura polifónica de Frei Domingos de São José (Portugal, Séc. XVII) seguiu-se a audição de obras de Carlos Seixas (Portugal, 1704/1742) de “linguagem cravística e italianizante” e, finalmente, de Sonata para órgão em Ré maior, de Marcos Portugal (Portugal, 1762/1830), de forma a ilustrar diacronicamente a produção portuguesa para órgão.
Saliente-se que esta última obra “com as suas alternâncias entre o Cheio, Clarins e solos de Flauta, foi concebida tendo em mente o tipo de órgão produzido por Machado e Cerveira e, sendo praticamente contemporânea do instrumento da Igreja do Convento de São Francisco, encontra nele um meio de expressão ideal.”
Informação facultada pelo Museu de Angra do Heroísmo