Instrumentos musicais de Moura
Flauta e tamboril
Memórias e práticas musicais – o tamborileiro em Santo Aleixo da Restauração (Baixo Alentejo)
A cultura expressiva na fronteira luso-espanhola: continuidade histórica e processos de transformação socioculturais, agentes e repertórios na construção de identidades (Concurso de Bolsa de Pós Doutoramento FCT/2012)
As fontes históricas e iconográficas portuguesas mostram-nos, desde a Idade Média, a presença do tamborileiro em contextos festivos e cerimoniais. O conjunto flauta e tamboril está ainda localizado nas zonas fronteiriças das Terras de Miranda (Trás-os-Montes) e no Baixo Alentejo, na Marguem Esquerda do Guadiana. A partir da segunda metade do século XX, esta prática musical sofreu um significativo decréscimo quantitativo e qualitativo, comparativamente a décadas anteriores. O seu estudo também mereceu pouca atenção académica, e deve-se a Ernesto Veiga de Oliveira e a Benjamim Pereira a recolha e gravações realizadas na década de 1960, a Michel Giacometti os registos da década de 1970, e à Associação Pé de Xumbo os estudos no site “Flauta do tamborileiro no Alentejo”.
Este site mereceu a atenção de Cyril Isnart (2013) que o caracterizou como o resultado “da pesquisa documental de um tocador de tipo revivalista”, Diogo Leal, que reuniu um conjunto de documentos originais, de fotografias, vídeos, arquivos, partituras e textos analíticos. A pesquisa apresentada, segundo a trama das monografias etnomusicológicas clássicas, e das indicações habituais das páginas de internet, transformou o tamborileiro em algo patrimonial, ou seja, “inscrito num regime de valor coletivo da música popular antiga e atual, a um nível bem mais elevado do que antes da sua exposição patrimonial” (Isnart 2013: 10).
No Baixo Alentejo, as funções do tamborileiro permanecem vinculadas às festas religioso-populares e aos peditórios das Comissões de Festa. Em Santo Aleixo da Restauração o tamborileiro está associado às festas de Santo António e da Tomina, assim como aos peditórios de Santo António e Santa Maria, com uma função cerimonial que perdeu ao longo do tempo a sua componente musical.
António Maria Cuco (1901-1976), conhecido por “O Estragado” foi o primeiro tamborileiro a ser fotografado e gravado por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, em 1961, para a obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses. Em 1965 o tamborileiro António Oliveira Lopes (1915-1984), conhecido por “Guinapo”, foi gravado por Michel Giacometti para o 6º episódio da série documental “Povo que Canta”, dedicado aos tamborileiros do Baixo Alentejo.
Na obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Benjamim Pereira assinala a sua experiência de terreno ao recordar António Maria Cuco nos seguintes termos.
“Recordo a visita à casa do tamborileiro António Maria Cuco, de Santo Aleixo da Restauração, a sua extrema modéstia e esmero, de uma só divisão, com chão de xisto límpido e paredes contrastantes na brancura da cal, a cozinha na superação rara dos sinais do fogo, a um dos lados e, no oposto, a cama num arranjo de dia festivo. Neste cenário da maior simplicidade destacava-se uma pequena arca de pinho que o António Maria abriu pondo a descoberto a dignidade da sua pobreza, o cheiro das ervas que perfumavam as roupas e, num escaninho, como um bem precioso, o pífaro que agora integra esta colecção”.
Na actualidade os tamborileiros de Santo Aleixo da Restauração são recordados em diferentes grupos familiares. Em Agosto de 2014, na mesma casa modesta citada no texto de Benjamim Pereira conversei com Maria Eugénia, filha de António Maria Cuco, residente nos arredores de Lisboa desde a década de 1970, que em Agosto regressa sempre à terra onde nasceu para assistir à Festa da Tomina.
Nasci no dia de Santa Maria, que era o dia do peditório, e então ele, sempre ouvi dizer que foi com a bebedeira de eu ter nascido que comprou o tambor. Lembro-me sempre dele em chegando a este dia, começava logo a arranjar o tambor. Porque ele quando chegava a casa, o tambor tinha umas cordas à volta e assim que chegava a este dia ele começava a apertá-lo, a apertá-lo e a experimentá-lo, e ele é que fazia as gaitas. Arranjava madeira e fazia as gaitas, e tocava muito bem, não há ninguém que toque como ele tocava, não há ninguém. E dava uma organização, não é por ser meu pai, mas dava uma organização muito grande na festa, dizia aos rapazes “vocês fazem, assim e assim” e agora cada um faz, agora já não é nada. Era uma coisa que ele fazia com gosto. Ganhava, parece que eram 20 escudos que ganhava, tocava dois dias, porque na altura a festa não eram tantos dias. Ele fazia assim, agora quem dá a Alvorada é a música, o meu pai saía daqui tocando o tambor de madrugada, toda a gente já sabia que ia ali o tamborileiro, tocando tum tum, tum tum, mas ele tocava muito bem. (…) Sei que vieram uns senhores aí a gravar, veio aqui o senhor Arlindo, levou-o para aí e estiveram a gravar. O meu irmão ainda tocou, tocava bem, mas não tocava como ele, mas tocava melhor que o Guinapo. O meu irmão ficou com o tambor, depois é que passou para esse senhor que era o Guinapo (Maria Eugénia, filha do tamborileiro António Cuco, irmã do tamborileiro Joaquim Grilo).
O “Toque do tamborileiro” executado por António Maria Cuco faz parte da colecção dos Arquivos Sonoros, que serviu de base à obra Instrumentos Musicais Populares Portugueses, e permanece ainda na memória dos mais idosos, como testemunhou o mestre Bento Figueira:
Antigamente havia um homem que se chamava tio António “Estragado” que era o tamborileiro, que esse é que era um homem, um profissional naquilo. Tinha uma música mesmo adequada aquilo, e o compasso, de forma que aquilo tocava bem e é sempre o que vai á frente da festa, tocando tambor e dando aquela coisa com aquele apitosinho, com uma gaita, uma gaita de madeira. Tinha aquele toque, dava-lhe duas ou três partes, mas era sempre a mesma coisa (Bento Figueira, à data mestre do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração).
A sonoridade dos toques dos tamborileiros transcende a componente musical, ou seja, está principalmente associada a significados e práticas rituais que organizam o pensamento e a ação dos indivíduos para o tempo festivo, como testemunharam as pessoas com quem conversei:
O tamborileiro faz falta, é o anúncio da Festa. Porque nós quando ouvimos aquele toque do tambor tum, tum tum, aquela coisa, olha já ai vem a festa, já aí vem a procissão, já aí vem o guião do peditório de Santo António, ou o peditório da Santa Maria, e é pelo tum tum do tambor, e quando era o ti António “Estragado” ouvia-se tanto o tum tum do tambor como o apito da gaita. O tamborileiro é isso, para ir à frente da Festa sempre. Esse tem que saberás ruas todas por onde a Festa tem de passar (Bento Figueira, mestre do grupo coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração).
Gostava de ver o meu pai nisso. O meu pai vinha na sexta-feira, tal como no dia de amanhã, começava já amanhã. O tambor estava na igreja, e o meu pai vinha sexta-feira à tarde par ir buscar o tambor à igreja para ir buscar os guiões à casa dos festeiros, para depois vir com os guiões para a igreja. E depois à tarde, quando vestem a Santinha (N. Srª. das Necessidades), o meu pai ficava na igreja a guardar a Santa, toda a noite, com os Festeiros e com a Guarda (GNR). Sexta toda a noite, sábado todo o dia até à hora da procissão, o meu pai não descansava, porque tinha de apanhar o tambor e ir na procissão. Depois, quando recolhia a procissão, sábado à noite, o meu pai ficava a guardar a Santa, porque a igreja estava aberta, até domingo à tarde que acabasse a outra procissão, mas nós gostávamos. O meu pai tinha muito gosto nisto, depois já começou com a idade, e a minha mãe já nem queria que ele andasse, já era muito cansativo para ele, e depois deixou, deixou a outro. (…) Chama as pessoas à porta, porque a gente ouve o tambor vai à porta, se já se ouve o tambor já aí vem o guião, como no dia da procissão. Gosto de ouvir, significa muito para mim, porque foi uma coisa que passou pelo meu pai, gosto de ouvir (Maria Castro Lopes, filha do tamborileiro Manuel Fialho Lopes).
Isto geralmente é para dar o alarme ao Povo, para as pessoas saberem que anda o guião, que andam as procissões pela rua., porque isto, ninguém vai aprender a fazer nada disto (Mariana Felícia Limpo, filha do tamborileiro António Oliveira Lopes, “Guinapo”).
Tamborileiro António Oliveira Lopes, “Guinapo”
Na festa da Tomina de 2014, António Grilo (Santo Aleixo da Restauração, 1975), neto de António Maria Cuco e filho do tamborileiro Joaquim Grilo “o Ficalheiro” desempenhou pela primeira vez a função de tamborileiro, para manter a tradição.
É um trabalho que eu nunca fiz, de tamborileiro. Apesar do meu pai e do meu avô fazerem eu nunca fiz, mas todos os anos trabalho para a Tomina, todos os anos tenho o meu ordenado e eles todos os anos me vão chamar e agora pediram-me “- É pá Grilo, podes desenrascar a gente? Foi o que eu disse ali dentro: “-Não tens mais ninguém, não te preocupes, eu vou!” (António Grilo, neto de António Cuco e filho de Joaquim Grilo).
As festas associadas a uma sociedade rural que se transformou, modernizaram-se, e são concebidas cada vez mais em função de práticas e consumos urbanos, na abordagem religiosa/profana e nas sonoridades musicais que se mesclam, mas ainda preservam componentes rituais que permitem ler o contexto rural. As funções do tamborileiro estabelecem uma narrativa tradicionalmente definida, independentemente do esvaziamento das funções rituais e da formação musical dos executantes. Como afirmou mestre Bento Figueira: “o tamborileiro faz falta, é o anúncio da Festa”, e desta forma cumpre a função de reordenar o tempo festivo e restabelecer, simbolicamente, a relação dos homens e das mulheres com os ciclos da natureza, como herança cultural preservada.
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