Elvas e a sua paisagem sonora
Paisagens sonoras em Elvas
Aleluias de Terrugem
Na aldeia de Terrugem, as “Aleluias” integram as celebrações da Páscoa, no Sábado de Aleluia, em memória da Ressurreição de Jesus. Os sinos da igreja marcam a meia noite de sábado para domingo de Páscoa, indicando o início das “Aleluias” em que moradores à varanda lançam rebuçados para conterrâneos e forasteiros. Jovens e adultos com chocalhos de vaca, maiores que as esquilas de cabra e ovelha, mantêm o toque a pedir rebuçados.
Sendo desconhecida a data da sua origem, sabe-se pelos testemunhos vivos que há cerca de 60 anos as Aleluias já aconteciam, mas logo pela manhã. Na altura, o seu início era marcado por duas voltas ao adro da igreja, de onde os rapazes, que tocavam os chocalhos como sinal de pedido de algum bem comestível, seguiam pelas ruas da freguesia e depois montes próximos. Antigamente as ofertas podiam ser rebuçados, um pedaço de pão ou de queijo, ou o que as pessoas tinham para dar.
Aleluias na Terrugem, Elvas
Atualmente, quando terminam os lançamentos dos rebuçados das varandas, surge na rua uma figura tradicional das Aleluias em Terrugem – o Senhor Serafim Carvão que, de cima de uma carrinha de caixa aberta, vai lançando cerca de 20 quilos de rebuçados que carrega numa sementeira antiga (saco com que se faziam as sementeiras de trigo ou de outros cereais). O neto acompanha-o, imitando-lhe os gestos, carregando uma sementeira mais pequena cheia de rebuçados, que vai lançando pelas ruas. Ouvem-se os chocalhos, que as pessoas tocam para pedir os doces. Estes rebuçados são, na maioria, oferta dos estabelecimentos comerciais da freguesia, que em respeito à tradição, contribuem para a festa.
Fonte: Município de Elvas
Ambiência sonora da Cidade
Som bélico
Que tipo de música se ouvia em Elvas nos séculos XVII e XVIII? Como se definia a ambiência sonora da cidade? Considerando o seu estatuto de cidade fronteiriça, palco de diversos conflitos históricos e com uma forte presença militar (testemunhada pelos quartéis e paióis), é razoável inferir que as sonoridades bélicas moldaram significativamente a paisagem sonora de Elvas durante um longo período. A par destes, os sons ritmados da construção – o trabalho dos pedreiros nas muralhas, fortes, igrejas, fontes e no aqueduto – seriam igualmente marcantes. O som dos cavalos e de outros animais, a diversidade das vozes dos moradores intramuros e, naturalmente, os sons associados às práticas litúrgicas e à devoção religiosa complementariam este cenário auditivo.
Sinos
Sinos
Os sinos da Sé de Elvas marcavam o pulso da cidade, integrando-se na sua paisagem sonora ao ditar as horas, ritmar a vida dos habitantes e convocar para as cerimónias litúrgicas. Que toques ecoariam? Dobros fúnebres e repiques festivos, certamente. Os toques a defuntos poderiam espelhar a hierarquia social, como noutras sés: um toque para a alta nobreza, outro para a nobreza local e um para o povo. Os sineiros eram os responsáveis por estes sons. A Sé regulava o tempo das igrejas próximas, cada uma com o seu sineiro. O número e a dimensão dos sinos refletiriam a importância da igreja: a Sé teria mais de quatro ou cinco, as paroquiais e conventuais menos, e as ermidas, um sino pequeno.
Missa
A participação musical na celebração da Missa em Elvas, durante os séculos XVII e XVIII, constituía um elemento central da experiência religiosa e da paisagem sonora da cidade. Embora a estrutura fundamental da liturgia se assemelhasse à atual, os cantos e as melodias que a adornavam apresentavam características distintas, profundamente enraizadas nas práticas musicais da época.
No início da celebração, o Introitus marcava a entrada do sacerdote e dos ministros, acompanhando o seu caminhar para o altar. Este canto, geralmente um salmo com antífona, estabelecia o tom litúrgico do dia, introduzindo o tema da celebração. A sua melodia, provavelmente em canto gregoriano, ecoaria pelas naves da Sé ou das igrejas paroquiais, envolvendo os fiéis num ambiente de solenidade e recolhimento.
Após a primeira leitura, seguia-se o Graduale, um canto responsorial de grande importância litúrgica e musical. Interpretado por um solista e respposta do coro, o Graduale meditava sobre a Palavra de Deus proclamada, frequentemente com melodias elaboradas e ornamentadas, demonstrando o virtuosismo dos cantores da Capela musical. Durante o tempo da Quaresma, o alegre Alleluia era substituído pelo austero Tractus, um canto salmódico contínuo, sem refrão, que refletia a penitência e a introspeção características desse período litúrgico.
Em certas festividades e solenidades, enriquecendo ainda mais a liturgia, surgia a Sequentia. Este canto, de origem mais tardia e com uma estrutura poética e musical própria, oferecia uma reflexão lírica sobre o mistério celebrado. A sua interpretação, por vezes com melodias mais melismáticas e expressivas, proporcionava um momento de particular beleza e intensidade emocional na Missa.
O momento da oferenda era acompanhado pelo Offertorium. Este canto, enquanto os fiéis apresentavam as suas dádivas e o pão e o vinho eram preparados para o sacrifício, criava uma atmosfera de participação e comunhão. As melodias do Offertorium podiam variar em caráter, desde o solene e contemplativo até ao mais processional e comunitário.
No coração da celebração eucarística, o Agnus Dei invocava a misericórdia de Cristo, Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Cantado repetidamente, este cântico permeava o espaço com um sentimento de súplica e paz, preparando os fiéis para a Comunhão. As suas melodias, frequentemente de grande beleza e expressividade, sublinhavam a centralidade do sacrifício de Cristo.
Finalmente, a Communio acompanhava o momento da receção da Eucaristia pelos fiéis. Este canto, geralmente um versículo de um salmo com antífona, reforçava a união dos crentes com Cristo através do sacramento. As suas melodias, muitas vezes mais simples e contemplativas, convidavam à interiorização e à ação de graças após a comunhão.
As melodias predominantes seriam as do canto gregoriano, com a sua riqueza modal e a sua fluidez rítmica, transmitidas oralmente ou através de manuscritos cuidadosamente preservados nos arquivos da Sé e de outras instituições religiosas. Contudo, a influência da polifonia renascentista e barroca também se faria sentir, especialmente em celebrações mais solenes, onde a Capela musical da Sé e de alguns conventos poderia interpretar composições mais elaboradas, a várias vozes, enriquecendo a textura sonora da liturgia.
Liturgia das Horas
A Liturgia das Horas, também conhecida como Ofício Divino, desempenhava um papel central na vida quotidiana dos religiosos em Elvas durante os séculos XVII e XVIII. Ao contrário das celebrações na Sé, onde a presença de músicos contratados era comum, a execução do Ofício Divino nos conventos e mosteiros era geralmente da responsabilidade dos próprios frades e freiras.
A oração estruturada ao longo do dia não era apenas uma prática devocional, mas sim uma ocupação fundamental para estes membros da comunidade religiosa. O dia era ritmado por uma sequência de horas canónicas, cada uma com a sua própria liturgia e significado:
- Matinas: Celebradas geralmente durante a noite ou ao amanhecer, eram um período de vigília e oração, marcando o início do dia litúrgico.
- Prima: Realizada na primeira hora da manhã (aproximadamente às 6h), santificava o início das atividades diárias.
- Laudes: Celebradas ao nascer do sol, davam graças a Deus pela luz do novo dia.
- Tércia: Rezada na terceira hora (cerca das 9h), interrompia as atividades da manhã para um momento de oração.
- Sexta: Celebrada ao meio-dia, abençoava a hora do repouso e da refeição.
- Noa: Rezada na nona hora (cerca das 15h), oferecia uma pausa para oração durante a tarde.
- Vésperas: Celebradas ao entardecer, davam graças pelo dia que terminava e preparavam para a noite.
- Completas: Rezadas antes de deitar, concluíam o dia litúrgico com uma oração de recolhimento e pedido de proteção durante a noite.
Dentro desta estrutura diária, as Laudes e as Vésperas assumiam uma importância particular. As Laudes, com a sua celebração da luz e da ressurreição, marcavam o início do dia com alegria e esperança. As Vésperas, por sua vez, com o seu tom mais contemplativo, ofereciam um momento de reflexão e gratidão pelo dia que chegava ao fim. Estas duas horas, frequentemente mais elaboradas e solenes, atraíam por vezes a participação de fiéis externos aos conventos, embora o essencial do Ofício Divino fosse reservado à comunidade religiosa.
A execução do Ofício Divino envolvia o canto de salmos, hinos, antífonas e responsórios, seguindo as melodias do canto gregoriano, transmitidas através de livros litúrgicos e da tradição oral. A simplicidade e a beleza austera destas melodias criavam uma atmosfera de serenidade e contemplação, propícia à oração e à meditação. Em alguns mosteiros e conventos, especialmente aqueles com maiores recursos, poderiam ser utilizadas formas musicais mais elaboradas, como a polifonia, em ocasiões especiais.
A prática regular do Ofício Divino moldava profundamente a vida dos frades e freiras, definindo o seu ritmo diário, fortalecendo a sua vida espiritual e unindo-os em comunidade. Através da oração e do canto, estes religiosos santificavam o tempo e o espaço, oferecendo a sua vida a Deus e intercedendo pela salvação do mundo.
Órgãos
O órgão de tubos desempenhou um papel fundamental na música sacra em Elvas durante os séculos XVII e XVIII, enriquecendo as celebrações litúrgicas e marcando a paisagem sonora da cidade. Para além do seu uso na Sé, o instrumento também era presente em outras igrejas e conventos, demonstrando a sua importância na prática musical da época.
A manutenção e reparação dos órgãos de tubos exigiam o trabalho especializado de organeiros. Os livros de pagamentos de serviços da época registam a presença de diversos profissionais, entre os quais se destacam:
• Jorge Alemão: Organeiro ativo em Elvas, responsável por trabalhos de manutenção e reparação do grande órgão da Sé.
• José Alemão: Possivelmente filho de Jorge Alemão, também atuou como organeiro na cidade.
• Pascoal Caetano Oldovino (Oldoni, Oldovino ou Olduvini): Este organeiro, com uma produção centrada no Alentejo, foi responsável pela construção de órgãos na região.
• José Martel: Outro organeiro que prestou serviços em Elvas, contribuindo para a manutenção dos instrumentos da cidade.
A presença destes organeiros demonstra a preocupação em assegurar o bom funcionamento dos órgãos, essenciais para a música litúrgica e para a vida religiosa da comunidade.
Para além dos organeiros, a figura do organista era central na música sacra. Estes músicos eram responsáveis por tocar o órgão durante as celebrações, enriquecendo a liturgia com a sua arte. Em Elvas, destaca-se a atividade de:
• José Sequeira: Organista da Sé de Elvas, também tocava na Igreja do Convento, demonstrando a sua importância na vida musical da cidade. Além de Sequeira, outros organistas atuaram em Elvas, participando em missas e no canto do terço.
Os organistas, com o seu talento e conhecimento musical, desempenhavam um papel crucial na animação das celebrações religiosas, contribuindo para a solenidade e a beleza da liturgia.
O órgão de tubos era utilizado em diversas ocasiões litúrgicas, enriquecendo a celebração com a sua sonoridade imponente e versátil. Na Sé de Elvas, o grande órgão era utilizado em missas solenes, festividades religiosas e outras celebrações importantes. O seu som majestoso enchia a catedral, elevando os fiéis e criando uma atmosfera de devoção e transcendência.
Para além da Sé, o órgão também era utilizado em outras igrejas e conventos de Elvas, embora com diferentes dimensões e características. Estes instrumentos, adaptados aos espaços e às necessidades de cada comunidade, desempenhavam um papel semelhante, enriquecendo a liturgia e proporcionando momentos de beleza e inspiração.
A música do órgão, com a sua diversidade de registos e timbres, adaptava-se aos diferentes momentos da celebração. Em momentos de alegria e festa, o órgão soava com exuberância e brilho, enquanto em momentos de penitência e recolhimento, assumia um caráter mais solene e contemplativo.
Festas
As festas em Elvas, nos séculos XVII e XVIII, constituíam momentos de grande importância social e cultural. Para além das celebrações religiosas, que marcavam o calendário, havia também festividades de caráter civil, que proporcionavam entretenimento e convívio à população. A música desempenhava um papel fundamental em todas estas manifestações, enriquecendo o ambiente festivo e contribuindo para a sua vivacidade.
No que diz respeito à música instrumental, as fontes históricas revelam a contratação de diversos músicos para as festas em Elvas. Os instrumentos de sopro eram particularmente apreciados, com destaque para:
- Sacabuxa: Este instrumento de metal, antepassado do trombone, era comum em conjuntos musicais da época, proporcionando um som grave e imponente.
- Charamela: Instrumento de palheta dupla, semelhante ao oboé, caracterizado por um som penetrante e expressiv
- Baixão: Instrumento de sopro grave, de grandes dimensões, que desempenhava um papel fundamental no baixo contínuo e na sustentação da harmonia.
- Outros instrumentos de sopro: Para além destes, outros instrumentos de sopro, como trompetes e cornetas, poderiam ser utilizados em festas ao ar livre e procissões, conferindo um caráter solene e festivo às celebrações.
Estes instrumentos de sopro eram frequentemente utilizados em conjunto com capelas setecentistas, formações musicais que incluíam cantores e instrumentistas, responsáveis pela execução de música sacra e profana.
Os instrumentos de corda e arco também marcavam presença nas festas, com destaque para:
- Violino: Instrumento de grande versatilidade, capaz de executar melodias virtuosas e expressivas, muito apreciado tanto na música sacra como na profana.
- Viola: Instrumento de corda e arco, de tamanho médio, que desempenhava um papel importante na harmonia e no acompanhamento.
- Rabecão: Instrumento de corda e arco grave, antepassado do violoncelo, que contribuía para o baixo contínuo e para a riqueza sonora do conjunto.
Estes instrumentos de corda eram utilizados em diversos contextos festivos, desde bailes e saraus a procissões e celebrações religiosas. A sua sonoridade elegante e expressiva enriquecia a música da época, proporcionando momentos de prazer e entretenimento.
A presença destes instrumentos e músicos nas festas de Elvas demonstra a importância da música na vida social e cultural da cidade. As celebrações eram momentos de encontro e convívio, onde a música desempenhava um papel fundamental na criação de um ambiente festivo e na expressão das emoções coletivas.
Terço Cantado
Nas pequenas capelas e ermidas de Elvas, nos séculos XVII, XVIII e XIX, era comum a prática do canto do “Terço de Nossa Senhora”. Esta forma de devoção mariana, profundamente enraizada na espiritualidade católica, seguia provavelmente um tom de recitação simples, em sintonia com os princípios da Devotio Moderna.
A Devotio Moderna, um movimento espiritual que floresceu na Europa a partir do século XIV, enfatizava a simplicidade, a interiorização e a experiência pessoal da fé. No contexto musical, esta espiritualidade traduzia-se numa preferência por formas de canto mais sóbrias e despojadas, em contraste com a complexidade da polifonia renascentista e barroca.
O “Terço de Nossa Senhora” cantado nas capelas e ermidas de Elvas refletiria, assim, esta estética da simplicidade. A melodia seria provavelmente uma fórmula de recitação simples, com inflexões suaves e um ritmo flexível, adaptado ao texto das orações. O canto, executado pelos fiéis presentes, criaria um ambiente de intimidade e recolhimento, favorecendo a meditação dos mistérios da vida de Cristo e de Maria.
A escolha do canto como forma de rezar o Terço não era fortuita. O canto, para além de embelezar a oração, facilitava a memorização dos textos, unia os fiéis em comunidade e elevava o espírito a Deus. A sua presença nas pequenas capelas e ermidas de Elvas testemunha a importância da música na vivência da fé e na expressão da devoção popular.
Música na Sé
A Sé de Elvas certamente contava com organista, Capela musical e mestre de Capela. Existiriam outros músicos residentes, enriquecendo ainda mais o ambiente sonoro da cidade? Ecoavam pelas suas naves as composições dos grandes polifonistas da Sé de Évora? As melodias de Manuel Rodrigues Coelho, natural de Elvas, ou de Filipe de Magalhães seriam ali ouvidas? É bastante provável, considerando a circulação de obras musicais entre as catedrais da época.
Aquando da dedicação de uma igreja em Elvas, não seria natural que se entoasse o ofício da dedicação, ou ao menos algumas das suas rubricas?
As procissões dos séculos XVII e XVIII transformavam muitas cidades em palcos musicais. As festividades, incluindo a solene celebração do Corpus Christi, integravam momentos profanos, onde a dança, como as vibrantes folias, tinha o seu lugar.
A significativa concentração de instituições religiosas em Elvas – conventos, igrejas paroquiais, a Misericórdia, capelas, – sugere fortemente que a paisagem sonora da cidade era profundamente marcada por sonoridades religiosas. Nos conventos, o órgão majestoso, o canto gregoriano solene e a complexa beleza da polifonia deveriam ocupar um lugar de destaque. Quem percorresse as ruas de Elvas há três séculos teria grandes probabilidades de escutar o canto do ofício divino, as melodias da missa e o repicar dos sinos.
Música nos conventos
Tendo sido das primeiras casas da Ordem dos Pregadores em Portugal (1267) é provável que a música tivesse um papel relevante no Convento de São Domingos, embora não se saiba muito por causa da extinção das ordens religiosas no século XIX e do desmembramento dos bens da ordem. Pelo número de livros de cantochão de que se tem conhecimento, o cantochão era provavelmente a base da música interpretada no convento. Mas a contratação de músicos externos, conforme os livros de pagamentos de serviços, sugere uma prática musical com estido concertado nas solenidades do Convento. Ao grupo musical residente juntavam-se outros músicos.
O Convento de São Domingos, fundado em 1267, foi uma das primeiras casas da Ordem dos Pregadores em Portugal. Dada a importância da ordem e o seu papel na vida religiosa e cultural da época, é provável que a música desempenhasse um papel significativo no convento. No entanto, a extinção das ordens religiosas no século XIX e a consequente dispersão do seu património dificultam o conhecimento detalhado das suas práticas musicais.
Apesar das lacunas na informação disponível, alguns indícios apontam para a relevância da música no Convento de São Domingos. A existência de um número considerável de livros de cantochão sugere que este canto litúrgico constituía a base da música conventual. O cantochão, com a sua melodia simples e solene, era utilizado nas celebrações litúrgicas e na oração diária dos frades.
Para além do cantochão, a contratação de músicos externos, documentada nos livros de pagamentos de serviços, indica a existência de uma prática musical mais elaborada, pelo menos em ocasiões solenes. A designada “prática musical com estilo concertado” sugere a interpretação de música com vários instrumentos e vozes, em que diferentes grupos ou solistas se alternam ou combinam. Este estilo, que se desenvolveu no período Barroco, contrastava com a homogeneidade do cantochão, explorando a diversidade de timbres e texturas.
É provável que, para além de um núcleo de músicos residentes no convento, fossem contratados músicos externos para enriquecer as celebrações em dias festivos e outras ocasiões especiais. Esta prática era comum em muitas instituições religiosas da época, que procuravam assim aumentar o brilho e a solenidade das suas cerimónias.
cancioneiro de Elvas
O cancioneiro de Elvas, atualmente albergado na Biblioteca Municipal Públia Hortênsia, em Elvas, é um manuscrito português do século XVI que reúne música e poesia do período renascentista. Esta obra constitui uma das fontes mais valiosas para o estudo da música profana na Península Ibérica, apresentando composições em português e castelhano.
Para além do seu valor musical, o cancioneiro de Elvas é também um importante testemunho da vida cultural e literária da época. Os poemas que integram o manuscrito, muitos deles de autores anónimos, refletem os gostos, as paixões e as preocupações da sociedade renascentista. Temas como o amor, a natureza, a sátira e a reflexão moral encontram-se representados nestas composições, oferecendo-nos um retrato vivo e multifacetado do período em que foram criadas.
A descoberta do cancioneiro de Elvas em 1928, pelo musicólogo Manuel Joaquim, representou um marco fundamental para o conhecimento da música portuguesa do século XVI. O manuscrito, que se encontrava na Biblioteca Municipal de Elvas, revelou um repertório rico e diversificado, com obras de grande qualidade artística que até então eram desconhecidas ou pouco estudadas.
Entre as obras musicais que integram o cancioneiro de Elvas, encontram-se vilancicos, cantigas e outras formas poético-musicais em português e castelhano. Estas composições, destinadas ao entretenimento em contextos cortesãos e privados, caracterizam-se pela sua melodia expressiva, pela sua harmonia cuidada e pela sua elaboração formal.
Apesar de muitas das obras do cancioneiro de Elvas serem anónimas, algumas delas podem ser atribuídas a compositores conhecidos da época, através de concordâncias com outros manuscritos e fontes musicais. Nomes como Juan del Encina e Pedro de Escobar, compositores ativos nas cortes espanholas, encontram-se entre os autores representados no cancioneiro.
Natal de Elvas
A canção de Natal tradicional portuguesa conhecida por diversos títulos, como “Olhei para o Céu”, “Natal de Elvas” ou “Eu hei de dar ao Menino”, tem uma origem profundamente ligada à cidade de Elvas. Esta canção, que celebra o nascimento de Jesus, possui uma melodia simples e emotiva, transmitida oralmente e com as novas tecnologias. A sua popularidade e significado cultural levaram a que fosse harmonizada por diversos compositores, conferindo-lhe novas roupagens e permitindo a sua interpretação em diferentes contextos e estilos musicais. Entre os compositores que se dedicaram a harmonizar esta canção, destacam-se:
- Mário de Sampayo Ribeiro: Compositor e maestro português, conhecido pelo seu trabalho na área da música coral e pela sua dedicação ao folclore musical português.
- Jorge Croner de Vasconcelos: Compositor e musicólogo, que se destacou pelo seu interesse na música tradicional portuguesa e pelo seu trabalho de recolha e divulgação do património musical do país.
- César Batalha: Compositor e maestro, com uma obra que abrange diversos géneros musicais, incluindo a música sacra e a música popular.
- Christopher Bochmann: Compositor e maestro inglês que reside em Portugal, onde lecionou na Escola Superior de Música de Lisboa. Compôs diversas obras, incluindo óperas, música orquestral, de câmara e coral.
As harmonizações destes compositores permitiram que a canção “Natal de Elvas” fosse interpretada por coros, grupos vocais e instrumentais, enriquecendo a sua sonoridade e expressividade. As diferentes versões da canção refletem a diversidade de estilos e abordagens musicais dos compositores, ao mesmo tempo que preservam a essência da melodia original.
A letra da canção, que varia ligeiramente consoante a versão, expressa a alegria e a devoção associadas ao nascimento de Jesus. Os versos descrevem a chegada do Menino Jesus, a adoração dos pastores e a oferta de presentes, transmitindo uma mensagem de paz, amor e esperança.
A canção “Natal de Elvas” é um exemplo da riqueza e da diversidade do património musical natalício português. A sua origem popular, a sua melodia cativante e as suas harmonizações eruditas contribuem para a sua permanência no tempo e para o seu lugar especial no coração dos portugueses, especialmente na região de Elvas.
Ronca de Elvas
A ronca é um instrumento tradicional que desempenha um papel fundamental no acompanhamento dos cantos de Natal em Elvas. Este popular membranofone de fricção possui uma estrutura de cerâmica com uma pele esticada numa das extremidades. A pele é posta em vibração por meio de uma cana fixada no seu centro.
O executante, com a mão molhada, fricciona a cana, provocando a vibração da pele e, consequentemente, a produção de um som rouco e característico – o “ronco” que dá nome ao instrumento. Este som, de timbre grave e contínuo, cria uma atmosfera sonora particular, que enriquece a experiência musical dos cantos de Natal.
A ronca é conhecida por diversas designações em diferentes regiões da Europa, África e América do Sul, tais como zamburra e zambomba. A sua presença em diferentes culturas musicais testemunha a sua antiguidade e a sua importância como instrumento de expressão musical popular.
Santuário do Senhor Jesus da Piedade, torres sineiras, créditos Vítor Oliveira